domingo, 5 de outubro de 2014

Uma imagem vale mil palavras: Gone Girl (2014)

Suspeito que isto que é um sinal do apocalipse, e provavelmente devia começar a preparar-me para o fim do mundo, mas é a terceira adaptação (consecutiva, este ano, o que quiserem) para filme de um livro que eu vejo e que me deixa mais satisfeita que o livro. É claro que ajuda muito eu ter tido alguns problemas com os respectivos livros, e que esses problemas tenham sido mais ou menos resolvidos nos filmes.

Também ajuda que eu tenha detestado o trabalho da autora Gillian Flynn no que era um bom livro até certo ponto, porque a partir daí, tudo é lucro. De qualquer modo, este género é a praia do David Fincher, por isso era quase impossível fazer um mau trabalho. Adicione-se a sua afinidade para thrillers ao facto de que corta com as partes mais irritantes do livro e trabalha mais as partes interessantes, para gerar uma experiência bem melhor para mim.

Um dos meus problemas com o livro é ter adivinhado o famoso twist da narrativa antes da página 40, graças a um comentário que a autora introduz na narrativa dum dos personagens. (Contexto: eu nunca, ou quase nunca, adivinho os culpados ou as reviravoltas nas histórias de mistério ou thrillers. Portanto, que eu tenha adivinhado... é porque é a autora quase que mo esfregou na cara.)

Felizmente, essa parte não está no filme, e melhor, deve-se um reconhecimento ao pessoal do marketing e dos trailers, e da divulgação do filme em geral, porque creio que conseguiram montar as coisas de modo a que os espectadores que não conhecem a história não adivinhem logo a tal reviravolta. Quanto a mim, como já sabia o que aí vinha, tive liberdade para acompanhar a narrativa sem me preocupar com isso.

O meu outro problema tem a ver o tipo de história que temos antes e depois da reviravolta. Antes da mesma, a autora faz um bom trabalho de caracterização psicológica dos personagens, do que pode correr mal num casamento, e até faz uma bela análise da importância das aparências vs. realidade, e do circo mediático que se gera em torno deste tipo de casos.

Entra em cena a reviravolta, e houve qualquer coisa depois da mesma que matou a minha suspension of disbelief. (E creio que no geral me é fácil mantê-la, podem contar-me as coisas mais estapafúrdias em livro que eu vou nessa.) Mas a cuidadosa caracterização psicológica passa a extrema e irrealista, houve qualquer coisa que fez o proverbial jump the shark e fiquei o resto do livro com vontade de arrancar cabelos.

Acho que o que o David Fincher fez, e muito bem, foi montar as coisas de modo a dar maior importância e a trabalhar bem a tal caracterização psicológica dos personagens, do casamento, a questão das aparências, e do circo mediático; e cortar com os detalhes ou diminuir a importância da parte que me buliu com os nervos. Ajuda que ele não tenha de manter a narração dos personagens a todo o momento.

Contudo, creio que é uma opção deliberada a aposta naquilo que é a força do livro, e isso faz um melhor filme, uma melhor narrativa. Não é perfeito, porque se apoia numa narrativa que acabei por vir a detestar, e que quanto mais penso nela mais buracos tem, mas é uma melhor história que a do livro me pareceu, e foi-me mais fácil manter a tal suspension of disbelief.

Fora isso, é um filme fantástico. Recomendaria a toda a gente. Grande parte dos leitores gostou do livro, e creio que vão encontrar uma boa adaptação, bem satisfatória. Quem não conhece a história tem tudo para sair surpreendido, porque a história tem realmente muitos pontos de interesse e de reflexão. Como disse, a história faz totalmente o estilo do David Fincher, por isso ele trabalha-a magistralmente.

O ritmo está bom, o ênfase, já o disse, está nas coisas certas, e mesmo com duas horas e meia de duração é impossível o aborrecimento. Dei por mim a rir-me de vez em quando com as idiossincrasias da história e dos personagens. Ah, e destaque para a banda sonora, que complementa mesmo bem a história.

É um aspecto interessante que eu tenha tido tantos problemas com a narrativa do livro e que seja ainda assim a autora do livro a responsável pelo argumento. Não sei avaliar o peso que um argumento tem no produto final, mas posso alvitrar que a transposição para guião a obrigou a cortar com algumas parvoíces, algumas coisas desnecessárias (as que me irritaram, pelo menos).

Às vezes a autora tenta ser tão subtil no livro que lhe saía o tipo pela culatra e parecia que me estava a esfregar as coisas na cara, e na passagem para filme esse tipo de coisa perde-se, felizmente. O trabalho de realização do David Fincher fez o resto, e foi um trabalho fantástico.

Em termos de actuação, os dois protagonistas saem-se muitíssimo bem. Não tinha a certeza de como os seus perfis se iam encaixar com os personagens, mas apropriaram-se dos papéis. Tinha mais confiança na Rosamund Pike, porque acho que emite um ar simultaneamente frio e adoravelmente virtuoso, o que é de certo modo perfeito para a Amy. Já conhecia o seu trabalho, por isso fico contente por ter um papel protagonista de destaque e em que faz um belo trabalho.

Quanto ao Ben Affleck, bem, às vezes tenho alguma dificuldade em perceber porque atrai tantas críticas como actor, mas suponho que para isso contribui que eu nunca tenha visto o que é considerado o pior filme da sua carreira, e já não me lembre propriamente bem do outro filme que fez e que é muito criticado. (Às vezes a minha memória selectiva é uma benção.)

Na sua prestação aqui, acho que faz um bom equilíbrio entre o Nick menino bonito e Nick pessoa repelente, simplificação minha que não traduz bem as nuances do personagem, mas elas estão no filme. Se pensarmos bem nisso, o seu vindouro papel em Batman v Superman: Dawn of Justice há de conter igualmente uma dualidade, a de menino bonito/playboy Bruce Wayne, e de Batman intenso e assustador, por isso se formos a avaliar por este filme, o homem é perfeito para a coisa. Mas veremos.

Quanto ao final, sinto-me um pouco enganada. Tanto barulho com terem reescrito o final, e é essencialmente o mesmo, talvez com pequenas diferenças e com um foco ligeiramente diferente. Não justifica tanto alarido, e não era preciso isso para me convencerem a ir ver o filme.

Penso que o realizador volta mais o foco para uma análise dos tais aspectos da importância das aparências e do mediatismo, o que é importante para mim, porque se afasta das coisas que não gostei na narrativa. Continua a ser um final arrepiante e bastante adequado. (Não tanto como no livro, porque ao filme falta o extremar de atitudes e personalidades que torna o fim especialmente adequado no livro, mas aceito esse sacrifício.)

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