quinta-feira, 3 de novembro de 2016

Picada Mortal, Rex Stout


Opinião: Era uma vez, há muitos anos atrás, apanhei uma série a passar na televisão. (Abençoada RTP2 quando passava um sem número de séries.) Não me lembro do título que lhe deram em português, mas era esta. Gostei mesmo do conceito e da execução, e do ambiente e dos personagens, e até da maneira como os mistérios se desenrolavam.

Resultado: andei nos meses (anos? não consigo precisar) a caçar livros do Rex Stout que pudessem ter o detective Nero Wolfe, e que foram publicados em Portugal pela colecção Vampiro na Livros do Brasil; só que já nessa altura, muitos dos livros eram difíceis de encontrar. Ainda li umas quantas coisas, e diverti-me com elas, mas infelizmente acho que não posso dizer que tenha adquirido e lido sequer o equivalente a metade da série. Uma pessoa cansa-se de andar a caçar livros impossíveis de encontrar, e parte para outras coisas.

Tinha saudades, no entanto. Há algo que a série de TV captou tão bem, que é o tom e o sentido de humor do autor. (Pelo menos penso que sim. Vi a série há tanto tempo.) Mas pronto, posso dizer que fiquei contente por ver que esta "reedição" ou lá o que é da colecção Vampiro inclui o Rex Stout; pode ser que desta vez eu consiga ler a série toda do Nero Wolfe.

Nero Wolfe é um detective peculiar. Obeso, reclusivo, não sai de casa para resolver casos; os casos vêm ter com ele. Nero interessa-se e desinteressa-se de casos com a mesma rapidez com que mudaria de camisa; mas quando um tem o seu interesse, é implacável. A investigação fora de casa deixa ao cargo do seu assistente/secretário/homem-dos-sete-ofícios, Archie Goodwin, sarcástico a tempo inteiro e sério apenas quando está inclinado para isso, e ocasionalmente, a outros detectives que contrata para ajudar num caso.

Sempre gostei muito desta dupla e de como o Rex os escreve. O Nero Wolfe é um tipo sisudo, impenetrável, quase misantrópico. Tem horários rígidos (ai de quem o queira interromper das 9 às 11 da manhã, e das 4 às 6 da tarde, quando dedica tempo ao seu hobby, jardinagem de... orquídeas), é um gourmet inveterado, e revira este mundo e o outro se isso impedir que tenha de sair de casa.

O Archie faz uma piada de tudo, mas é imensamente observador e reconta perfeitamente o que observou, interrogou, encontrou ao Nero, e por isso é essencial ao processo de investigação, ainda que nenhum dos dois provavelmente o admita. Além disso, o Archie, com o seu sarcasmo e piadinhas, é a pessoa perfeita como contraponto ao Nero; diria que o atiça, puxa por ele, mantém as coisas interessantes.

Creio que o Rex Stout fez uma caracterização excelente com estes dois. Nunca faz parecer que um é mais que o outro; são iguais, de certo modo, apenas pessoas com capacidades diferentes e que se complementam bem. O Nero nunca seria capaz de sair de casa e andar a interrogar pessoas e facilitar certos acontecimentos; tal como o Archie também detestaria ficar fechado em casa e e fazer conexões impossíveis entre coisas aparentemente não relacionadas.

Outra coisa que apreciei no autor quando o li no passado, e novamente com este livro: o sentido de humor. Não só nas observações e comentários do Archie (que é o narrador da história e absolutamente hilariante), mas nos próprios acontecimentos, na domesticidade da casa-prédio (uma brownstone, que sonho) de Nero, nas interacções dele com o Archie, e ocasionalmente com as pessoas envolvidas no mistério.

O mistério em si contado neste livro parece-me ser um bom exemplo das histórias contadas por Rex Stout, pelo que me lembro: um acontecimento banal revela ser um mistério convoluto, com reviravoltas sobre o método do assassinato, o papel do assassino e até do assassinado. E curiosamente, o culpado é estabelecido bastante antes de o livro terminar: o interesse prende-se mais com a maneira como vai ser apanhado, e a história resolvida. (E a solução deste é bastante interessante. A acusação que o Archie faz ao Nero no fim, ainda mais.)

Ah, espero que não demorem muito até publicar o próximo livro do Rex Stout na colecção Vampiro. Que vontade de matar saudades outra vez.

P.S.: Pergunto-me se a tradução é nova ou a original da Livros do Brasil? Achei ali umas coisas estranhas no meio que precisavam de tradução e revisão cuidadas. (Como a referência aos anos 50 que apanhei - a história passa-se em 1933.) Preguiça much, Porto Editora? Não é só comprar uma editora mais pequena e aproveitar-se da colecção literária que eles já têm; bem que podiam juntar algum valor literário à aquisição, usando as vossas capacidades para melhorar o produto que apresentam. E um livro é sempre um produto, por mais que queiramos fingir que não.

Título original: Fer-de-lance (1934)

Páginas: 296

Editora: Livros do Brasil

Tradução: Eduardo Saló

3 comentários:

  1. Completamente off topic: já viste a sinopse? https://www.goodreads.com/book/show/31931722-the-girl-with-the-make-believe-husband
    Afinal a moça não é americana, mas o resto é basicamente o que já tínhamos falado :D

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    1. Quando vi o teu comentário no meu e-mail, a minha resposta imediata foi sair-me um: "então se não é americana... é o quê?" xD Afinal isto ainda o torna mais convoluto, a moça fugiu de casa! :P *esfrega as mãos de contentamento* Assim vai ser difícil ao Andrew arranjar uma história ainda mais estranha... xD

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    2. Sim, estávamos naquela que se ele ia conhecer alguém na América então ela tinha de ser obrigatoriamente americana, mas ainda não é desta que a JQ se atreve.
      Mas bolas que a Cecilia é corajosa, pelo que percebi ela vai viajar completamente sozinha para encontrar o irmão do outro lado do Atlântico. :O

      Pergunto-me se ele lhe vai dizer que recuperou a memória mal a recupere ou vai entrar na jogada, eeeeek quero este livro JÁ! :D

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