sábado, 17 de dezembro de 2016

Uma imagem vale mil palavras: Fantastic Beasts and Where to Find Them (2016)

Queria tanto escrever esta opinião há tanto tempo, mas como tudo, tenho estado a engonhar. As coisas acerca das quais eu tenho mais para dizer são aquelas cuja opinião é mais difícil de começar. Bem, aqui vamos nós.

Foi tremendamente excitante ver os primeiros minutos do filme: primeiro, porque pegam na música inicial dos filmes do Harry Potter (apelando à nossa memória auditiva e emocional), e transformam-na em algo novo (bastante adequado); depois, adorei a montagem de uma série de artigos de jornal que enquadram os acontecimentos da época perfeitamente, dando uma ideia da sociedade mágica que vamos encontrar (adoraria ver aquilo em slow motion e podendo ler todos os detalhes, seria divertido).

Este filme é bastante diferente dos outros em muitas coisas. Não quer dizer que não vá eventualmente encaminhar-se para uma estrutura distante da que aqui vimos, e talvez mais proxima da dos outros; mas até que gostei da forma como foi enquadrado. De certo modo, é quase como o primeiro livro do Harry Potter. Uma forma de nos mostrar o worldbuilding, uma história simples mas não simplória com um mistério subjacente que se torna óbvio quando pensamos um pouco sobre isso, com uma série de pequenos detalhes e pormenores que serão explorados no futuro e prevêem coisas maiores e mais importantes/sérias/ligadas ao panorama geral.

Porque vista de fora, a premissa é realmente bastante simples: o Newt Scamander chega a Nova Iorque com um propósito específico (ou vários, depende do ponto de vista e das teorias que já correm), mete-se em sarilhos, algumas criaturas mágicas que transporta consigo fogem, ele (e outros que o rodeiam) tem de voltar a apanhá-los e resguardá-los - para segurança dos humanos mas também para segurança dos próprios "monstros".

Só que nunca é assim tão simples com a J.K. Rowling, é? Às vezes acho que a cabeça dela está a funcionar em meia dúzia de faixas diferentes e nós só estamos a ver no momento uma ou duas. Para uma pessoa que escreveu sobre um mundo que toda a gente que com ele cresceu quer habitar, ela é muito boa a escrever sobre os defeitos humanos, sobre como a sociedade tem os seus preconceitos e vícios, e como as figuras de autoridade não devem ser deificadas, porque são humanos e falíveis e propensos a cometer erros e a mostrar os seus defeitos.

Na série do Harry Potter, vimos, livro após livro, como o Ministério da Magia britânico era ineficaz a proteger os seus, a tomar decisões difíceis, a aceitar verdades complicadas de engolir. Neste filme, nesta versão do mundo mágico que se passa apenas algumas décadas antes, a sociedade mágica americana dos anos 20 é estranhamente um reflexo da sociedade No-Maj (humanos não-mágicos) em geral dessa época.

Sim, eles são mais progressivos em algumas coisas, não caem facilmente em certos preconceitos humanos. (Não há aparente segregação racial e as mulheres parecem ter mais liberdade.) Mas há igualmente uma segregação de pessoas (entre mágicos e No-Maj), e é uma sociedade igualmente rígida. A América da Lei Seca reflecte-se entre os mágicos como uma série de leis duras que controlam a actividade mágica: o uso de varinhas mais restrito, a proibição de criaturas mágicas em Nova Iorque (e pouco conhecimento acerca delas além de "serem perigosas"), a separação integral dos No-Maj, as penas mais severas para quem quebra a lei.

Acho ainda fascinante como mostram o comportamento dos mágicos americanos nesta época. São melhores a disfarçar-se entre os humanos, por terem de ser mais discretos, já que a roupa usada é bastante em linha com os trajes de época; o MACUSA (o equivalente do Ministério) parece-me portar-se em partes como uma espécie de FBI dos mágicos; e até a maneira como fazem magia parece um pouco diferente. Há a maneira como as Aparições são mostradas, o que pode simplesmente ser um detalhe estilístico escolhido pelos criadores do filme para tornar a coisa mais interessante.

Contudo, também podemos ver como um uso mais controlado de varinhas faz com que os mágicos americanos pareçam mais inclinados para fazer magia não-verbal quando é necessário, e ao mesmo tempo, quando é para fazer um feitiço em grande, eles fazem-no mesmo em grande. (Veja-se: o escudo que eles fazem à volta da estação de metro; ou a reconstrução de Nova Iorque no fim. Pobre Nova Iorque. Até a J.K. Rowling e cia. não resistiram a dar cabo da cidade.)

[Não que acredite que os adultos britânicos no Harry Potter não sejam capazes de fazer magia não-verbal ; calculo que todos os alunos em Hogwarts sejam treinados a fazê-lo, alguns com mais sucesso, outros com menos. Na série só vemos menos gente a fazê-lo porque com jovens a aprender os professores são obrigados a fazê-lo de forma verbal; e porque de qualquer modo o Harry e o Ron tinham menos queda para a coisa que a Hermione, e o trio acabou por em muitas coisas ter uma educação não convencional.]

Adiante. Já obcequei demasiado com esta parte, mas a sério, adorei a parte do worldbuilding aqui. E nem falei de metade. Gostei tanto de ver o edifício do MACUSA, ou de conhecer o speakeasy mágico a certa altura, e as criaturas que o povoam.

Gostava ainda de destacar o conceito de obscurial/obscurus que foi introduzido; é crucial a um dos pontos chave da narrativa, e desenvolvido duma maneira interessante; e também é uma explicação óbvia para o que aconteceu com a Ariana Dumbledore, agora que conhecemos este conceito. Até faria sentido tendo em conta a potencial importância do Grindelwald nesta pentalogia.

Também gostei de conhecer os "monstros" que o filme tinha preparado para nós; os efeitos especiais são fantásticos e criam uma fauna rica de animais mágicos, muitos dos quais já tínhamos visto mencionados no livrinho que dá o título a este filme. O niffler, por exemplo, é a coisa mais adorável de sempre e proporciona muitas das cenas divertidas do filme, devido à sua cleptomania.

Aliás, quaisquer dos seres que fogem da mala têm um bom tempo de antena e torna-se divertido descobri-los; mas também adorei ver a mala em si e a sua... capacidade. Extraordinária. À medida que o Jacob a ia percorrendo e se ia maravilhando com o que via, também o espectador podia fazer o mesmo. (Gostei muito do thunderbird, por exemplo.)

Focando-me no elenco de personagens, gosto muito da ideia de desta vez nos focarmos em adultos. É muito provavelmente uma escolha consciente; a audiência que cresceu com os livros é adulta agora, e pode identificar-se com protagonistas da mesma idade, gente nos seus vintes/trintas. De qualquer modo, é uma óptima escolha porque a perspectiva de jovens mágicos nos livros limitava um bocadinho no worldbuilding que podemos ver explorado; há uma série de aspectos da vida adulta mágica a que podemos ter acesso. A proficiência mágica é diferente, as preocupações também, e agrada-me isso.

A minha personagem favorita, no entanto, tem de ser a Queenie. É mesmo da J.K. Rowling criar uma personagem que passe despercebida, mas contenha multitudes nela. À primeira vista ela pode parecer apenas uma mulher bonita, sem muito que contribuir para o mundo - o trabalho dela no MACUSA é algo como uma secretária. Mas depois descobrimos que ela é uma Legilimens particularmente dotada.

E isso dá toda uma nova dimensão a ela. Sabemos que a leitura de pensamentos e ocultação dos mesmos são capacidades muito difíceis de adquirir, necessitando uma prática aturada... por isso, alguém que o faz sem suar? A) Muito impressionante. B) Devíamos todos ter medo dela. C) E agradecer que tal capacidade tenha caído no colo de alguém que é um doce de pessoa e nunca seria capaz de a usar para o mal. Credo, o que seriam os feiticeiros negros com uma bomba destas em mãos.

A única coisa menos agradável acerca da Queenie é o embaraço social provocado por responder aos pensamentos das pessoas como se estivessem a ter uma conversa em voz alta. Mas de certo modo, é preferível que seja honesta acerca de ler pensamentos, a personalidade dela não parece dada a artifícios. Oh, calculo que seja muito cuidadosa no MACUSA para não se revelar, mas deve ter lido algo no Newt e no Jacob que a fez confiar neles - e isso também é interessante: aquilo que ela descobre das pessoas com um pensamento.

E por fim, adoro que a primeira coisa que ela faz quando percebe que a irmã está em perigo é meter mãos à obra. Mata logo a imagem de "fêmea frágil, vápida e vaporosa" que a sua personalidade pode sugerir. E adoro que ela use essa imagem para eles se escapulirem do MACUSA de fininho.

Ok, tenho de falar do resto do pessoal. Gostei mesmo do Jacob, é tão refrescante ver um Muggle No-Maj que contacta com o mundo mágico e entra nele com maravilhamento e encanto. Gosto da sua personalidade bondosa e gosto que encare os desafios mágicos com uma mente aberta, apegando-se ao grupo e ajudando-os no que pode. É uma colaboração entre os dois lados da moeda maravilhosa.

A Tina é uma personagem mais resguardada, em contraste com a irmã. Tem um arco emocional relacionado com um conflito que começou antes do início do filme, e um conflito que não é o principal, aparentemente, mas depois se revela crucial na narrativa. Mas há tanto que não vemos na Tina, apenas vislumbramos. E é o género de coisa que gostava de ver explorada. Seria mais fácil vê-lo nos livros; não sei como farão nos filmes. Mas creio que definitivamente seria interessante explorar o tempo depois dela e a irmã ficarem orfãs, como terá ficado responsável por tudo, e como isso guiou a sua carreira profissional e as suas ambições. Sinto que há muito por minar aí.

A Tina é outra personagem que é fácil subestimar, pelo seu comportamento discreto e algo severo. Mas tenho a sensação que alguém ainda vai cometer esse erro e lixar-se. (Ela no fim do filme estava em combate com um certo personagem e as suas varinhas ligaram-se; pode ser pelo efeito cinemático, mas também pode ser por isso querer significar alguma coisa.)

Já o Newt... bem, tenho uma teoria acerca de que o actor (e toda a gente envolvida que o deixou fazer isso, porque não acredito que seja só dele, não num franchise gigantesco como este) estava a tentar representar o Newt como estando no espectro do autismo. Provavelmente no lado "altamente funcional", como a síndrome de Asperger. Mas tem alguns sinais. O não fazer contacto visual, ser bastante desajeitado no relacionamento social com outros (apesar de se ter treinado a compreender certas coisas nesta área, parece-me), o foco numa área muito específica de conhecimento ("monstros fantásticos")... podia ser. Não pretendo ser uma especialista na área, e ninguém do filme veio confirmar isso cá para fora, por isso, não é algo acerca do qual possa ter 100% de certeza.

Contudo, mesmo que o Newt seja simplesmente alguém desajeitado no trato com os outros, e bastante dedicado à sua área, ainda assim é refrescante. Não se vêem muitos protagonistas com o seu perfil. O tipo de protagonista gentil, um nadinha desastrado, mas bastante perceptivo (creio que o Newt percebeu, ou suspeitou, o que se passava com o vilão da história muito antes de toda a gente; tenho a sensação que a sua curiosidade foi suscitada na cena do interrogatório, pelo menos). É muito giro vê-lo interagir com os "monstros", porque é a única altura em que parece realmente aberto e sorridente; e de qualquer modo, é com os monstros que se permite libertar e fazer certas coisas sem embaraço (a captura do "rinoceronte"-cujo-nome-não-me-lembro é bastante divertida).

O último destaque seria para o Colin Farrell, ao qual eu nunca dei muito crédito, mas ele viveu o personagem dele tão a fundo que eu teria muita pena se eles não arranjassem maneira de o manter nos próximos filmes. Contrariamente, sou capaz de ter resmungado muito quando soube que o Johnny Depp ia passar a fazer parte dos filmes; começo a ficar algo enjoada da fronha dele, devido à necessidade patológica que Hollywood tem de o meter em tudo e mais alguma coisa, sempre a fazer o papel do esquisito. Estes filmes não eram uns em que eu precisasse de o ver. Bem, pelo menos a caracterização dele está interessante visualmente, porque é bastante diferente de como se costuma apresentar.

Por fim, depois de tanto fangirling - foi uma oportunidade de ouro, retornar a um mundo que tanto aprecio -, tenho também a dizer que a história em si, o filme, como narrativa não funciona inteiramente bem. Há algo no fluxo do enredo que me caiu menos bem. Fui ver o filme duas vezes, e ainda bem que fui. Houve certas sequências que não me pareceram muito claras, e beneficiei da segunda visualização. E preferia muito que se tivesse dedicado bem mais tempo a caracterizar os personagens, a fazer-nos preocupar com eles e compreender como "funcionam".

Acho que aqui posso culpar em parte a edição e montagem final do filme, mas também o argumento - é interessante que a Jo seja a responsável única pelo mesmo, garante-nos que aquilo que está na história é da cabeça dela, mas tenho a sensação que o argumento podia ter sido escrito em co-autoria com alguém com mais prática na coisa, que pudesse guiar o texto para ser algo mais cinemático. A linguagem que funciona em livros não funciona necessariamente em filmes. Gostaria no entanto de ler o argumento, que foi publicado recentemente, para tirar as minhas dúvidas sobre o mesmo.

Ah, e por fim, finalmente... Estou muito animada para o próximo volume. Pergunto-me se manterão os protagonistas, porque aquilo que sabemos do segundo filme parece sugerir uma mudança de foco; mas como não se sabe muito, também não se pode tirar grandes conclusões da coisa. É esperar para ver.

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