terça-feira, 17 de outubro de 2017

Curtas: companions de Downton Abbey e Sherlock

Portanto, há uns tempos atrás andava a precisar de espreitar as coisas que tinha aqui em casa sobre Sherlock (já escrevo sobre isso), mas ao mesmo tempo achei que podia pegar também nos livros que ainda tinha por ler de Downton Abbey, já que não pego em nada relacionado com a série há que tempos. (E pronto, ver a série duma ponta à outra neste momento é impraticável.)

O primeiro livrinho é escrito como se fosse o Mr. Carson a escrevê-lo e a passá-lo aos outros criados de Downton Abbey: é um livro de regras sobre o que é o âmbito de cada criado em termos de tarefas (e tem um bónus sobre formas de tratamento e precedência entre títulos nobiliárquicos). É giro e antástico porque é detalhado, e permite-nos um maior respeito pela quantidade de coisas que estas pessoas tinham de fazer, e de se lembrar, e como tinham de se comportar.

O segundo livro é claramente aquilo a que se chama um coffee table book, como os anteriores da série: lindo, profusamente ilustrado com dezenas de fotos com boa qualidade (no geral, uma ou outra é capaz de não ter a resolução necessária) - só por isso vale a pena.

A mais valia deste livro também se prende com o facto de ter os capítulos divididos em meses, e em cada "mês" abordar um tema da vida em Downton Abbey. Sinto que é, dos vários livros dedicados à série que já me passaram pelas mãos, aquele que é mais útil e mais bem pesquisado e conseguido.

É incrivelmente compreensivo, falando de temas como a época de caça, as debutantes, a season londrina, as quintas que suportavam a casa, as crianças, o viajar, o estar em casa, o receber visitantes... são abordados aspectos como estes, e descritos nas suas dimensões sociais e práticas, de forma a vermos como seria a vida nesta época para uma família como os Crawley. É daqueles livros que me fez sentir que aprendi com ele.

Tenta relacionar com o que vimos no ecrã acontecer aos personagens, e faz imensas referências à série e ao enredo até à temporada 4 (a 5 estaria a começar no lançamento do livro), e faz destaques a vários intervenientes na produção da série.

E sobretudo, teve o condão de me fazer perceber quantas saudades tenho de ver Downton Abbey. Era soberbamente escrita, focada nesta família, escrita como se eles fossem da nossa família, sem heróis nem vilões (bem, talvez a Vera Bates, e o Julian Fellowes, quando decidiu escrever o fim da temporada 3 como a escreveu), só pessoas com virtudes e defeitos.

Permitia-nos andar nos sapatos de toda a gente e compreendê-los; raios, até do Thomas tenho saudades. Não tinha juízo nenhum, mas sempre o achei um dos melhores personagens porque a sua personalidade fazia tanto sentido nas circunstâncias em que vivia e existia. Downton Abbey era escrito e produzido com amor e detalhe, e notava-se, e isso não tem preço.

Sherlock Chronicles, Steve Tribe
O que nos leva a Sherlock. Ah, como eu tenho saudades das primeiras duas temporadas. E até da espera antes da terceira. E até partes da terceira. E digo isto porque vi recentemente a quarta, e raios, terminei-a dividida entre pensar que os escritores ou são incrivelmente idiotas, ou são demasiado inteligentes para o seu próprio bem, e nesse caso, a este ponto do campeonato deviam estar a revelar mais do jogo, sob pena de ficarmos a pensar que são a opção número um.

De qualquer modo... depois de ver a dita cuja fiquei tão frustrada, porque sinto uma espécie de dissonância cognitiva, entre aquilo que vi tomado sem intepretação, e aquilo que eu acho que vi, interpretado à enésima, que atribui a este pessoal intenções que eu não sei se tinham, porque não temos provas suficientes para isso.

Como cereja no topo do bolo, a temporada termina duma maneira que serviria como final da série, se não tiverem oportunidade para mais, o que é horrível, porque sinto que há tanta coisa por explicar que seria como se a J.K. Rowling tivesse morrido ao fim do sexto livro e nós nunca tivéssemos lido o final da história do Harry e da derrota de Voldemort.

Felizmente, não preciso de pensar nisso durante mais dois ou três anos. Yay?

Focando-me nos livros: achei-os muito parecidos: o primeiro dedicado às temporadas 1 e 2, o segundo livro a essas duas, mais à terceira; cada capítulo que têm dedica-se a explorar um episódio, e por vezes usam as mesmas entrevistas com os actores e o texto é igual ou semelhante. O Casebook tem apenas a particularidade de pelo meio dos capítulos fingir que é o livro de casos do Watson, com post-its trocados entre o Sherlock e o John, a comentar os casos. (Esta parte é gira.)

O Chronicles é um pouco mais aprofundado, no entanto, falando do enredo de cada episódio, como se filmou, apresentando os actores novos da série no episódio em que aparecem, comentando o impacto de cada episódio... é profusamente ilustrado e a parte de design destes livros deixa-me sempre maravilhada. Em adição, contém parte onde contrapõe o argumento da série às histórias em que se basearam, o que é muito engraçado. E adorei ver como se lembraram da ideia do texto no ecrã.

Uma boa edição, muito completa, enche o olho visualmente, e tem uma coisa curiosa, no fim do livro tem a lista do elenco e equipa para cada episódio.

segunda-feira, 16 de outubro de 2017

Curtas BD: Revistas Marvel, Homem-Aranha e Vingadores, volumes 3 e 4

Homem-Aranha vol. 3: O Reino das Trevas / Miles Morales, Dan Slott, Matteo Buffagni, Brian Michael Bendis, Sara Pichelli
Homem-Aranha vol. 4: A Ascensão do Escorpião / Miles Morales, Dan Slott, Giuseppe Camuncoli, Brian Michael Bendis, Sara Pichelli
A primeira história do volume 3 foca-se no Peter Parker e no retorno do Sr. Negativo, um personagem que altera as personalidades dos que o rodeiam... e que conseguiu fazê-lo com Cloak e Dagger, um par de super-heróis secundários (mas que sempre me deixou curiosa). A inversão destes dois heróis é interessante, pois os seus poderes complementam-se. A história é excitante porque o Peter descobre um espião na empresa, e achei interessante a relação dele e do Aranha com a policia chinesa, que é mais aberta e respeitosa do que esperaria. Gostei de ver.

A primeira história do volume 4 também é do Peter, e foca-se no término do enredo do Escorpião. O início passa pelo Peter como Aranha e o Nick Fury irem para o espaço, e é tão divertido ver o Peter tentar quebrar o exterior sério do Nick. O Aranha faz uma reentrada na atmosfera assustadora e excitante e lança-se em perseguição do Escorpião com a ajuda da Anna Marie Marconi, que foi a melhor coisa a sair do Homem-Aranha Superior. Os comentários dela para o Peter são amorosamente sarcásticos. O objectivo final do Escorpião era descobrir os eventos do próximo ano, e as menções que faz são curiosas.

Por fim, o Miles Morales, que tem história nos dois volumes, mas prefiro comentar tudo em conjunto. Pontos bónus já de entrada para a arte super-realista, que me encantou deveras, e dá um sentido terra-a-terra à história do Miles. Que é tão interessante e fofo e sei lá o quê. De certo modo é como se estivéssemos a rever alguns dilemas do Peter sob uma nova lente.

O Miles é alguém diferente, com um percurso de vida diferente e um objectivo diferente, mas encontra os mesmos problemas. As dificuldades na escola por causa da sua vida dupla, o resistir a correr para a refrega assim que ouve sirenes a passar, os conflitos com a família (só o pai sabe que ele é o Aranha) - que têm uma evolução hilariante, já que a avó materna é uma abuelita latina duríssima que está pronta a saltar para conclusões e achar que ele está metido com raparigas. Ou com drogas.

Outra coisa interessante que notei nestes poucos números é a reflexão de alguns parâmetros que podem fazer alguém ser considerado, hmm, "diferente", e como isso condiciona a sua experiência. O Miles fica frustrado quando o seu fato é rasgado e as pessoas percebem que ele não é branco, porque não quer ser conhecido como o "Aranha negro". O seu companheiro de quarto, o Ganke, discute com ele o que é ser gordo e como isso o marginaliza a ele.

E o Ganke faz o Miles "sair do armário" superheróico à frente de outra pessoa, um mutante que vai para a escola deles, o que é compreensivelmente frustrante para o Miles. Na comunidade super-heróica só a Kamala sabe, creio eu. (Nota tangente para rapazes adolescentes e a sua necessidade de se revelarem à Kamala. O Nova fez o mesmo. Ai, essas hormonas adolescentes...)

O que quero destacar com isto é que estas questões são apresentadas sob vários prismas, debatidas, mas tal como estes jovens ainda estão a formar opiniões sobre o mundo, também não nos é apresentada nenhuma verdade universal sobre elas, o que gosto de ver.

Pequenos destaques: o pai do Miles costumava ser um agente SHIELD; o comentário sobre ter superpoderes e existir num mundo onde têm de ser usados (apropriado ao espírito dos tempos que passamos); a questão da fangirl deste Aranha, que é gira mas podia ser menos irritante; e a "bênção" do Peter como Aranha a este Aranha, depois do Miles ter derrotado um demónio que deu água pela barba ao resto dos Vingadores.

Vingadores vol. 3: Ataque a Pleasant Hill, Gerry Duggan, Carlos Pacheco, Nick Spencer, Jesús Saiz, Mark Bagley
Vingadores vol. 4: Ataque a Pleasant Hill: Omega, Gerry Duggan, Ryan Stegman, Mark Waid, Adam Kubert, Nick Spencer, Daniel Acuña
O enredo de Pleasant Hill converge à medida que as duas equipas se dirigem para a cidade; a acção e a sequência de eventos podia ser mais clara, no entanto (imagino se reorganizar a ordem das revistas não ajudaria). O conceito de Pleasant Hill é aterrorizador, porque conquanto está a tentar lidar com vilões e criminosos perigosos, é algo que mexe com liberdades individuais e com as personalidades das pessoas envolvidas, e nunca uma história distópica começou com tão boas intenções, pois não? Heh. É algo a pedir para dar asneira.

A situação dos Inumanos está no centro das atenções no mundo Marvel (algo que não é inocente, pois o outro grupo de ostracizados - os X-Men - está, no mundo cinemático, nas mãos de outro estúdio que não a Marvel... então para serem vendáveis como um grupo alternativo, a Marvel tem destacado mais os Inumanos nos comics - para além de integrarem conceitos e personagens originais do MCU), e pronto, é coisa que eu gostava de saber mais sobre, ver como se deu.

A coisa interessante de Pleasant Hill é que os vilões são incorporados, mas começam a despertar e a quebrar as barreiras da realidade em que estão; e depois o mesmo acontece com os heróis. No caso destes, começa com a Rogue, que tinha uma programação mental instalada pelo Professor Xavier exactamente para este tipo de situações e para a ajudar a sair da "realidade imaginada".

Outro ponto interessante sobre esta história é a questão de Kobik, um cubo cósmico que aqui assume uma forma sentiente, e julgo que isso altera um pouco a perspectiva das coisas. Em adição é muito interessante ver o Deadpool lidar com ela. Por muito palhacito que o Deadpool seja, fizeram-lhe coisas horríveis e traz uma espécie de sobriedade ao personagem ver os momentos em que ele partilha essas coisas. Há um mar profundo sob a fachada e tudo o mais... as pessoas são bem mais que as máscaras que usam e outros lugares-comuns.

Há pequenos momentos divertidos que eu adorei ver: a Kamala ao "acordar" esmurra a Rogue porque "magoou a Carol" (a anterior Ms. Marvel), ou a piada do Deadpool sobre o Wolverine morrer - só ele iria a esse ponto.

Outros momentos de destaque: um com o Bucky e o Steve a relembrar os velhos tempos, e a questão em cima da mesa; o Visão a permitir à Kamala ver os "Greatest Hits" dos Vingadores para se sentir integrada, o que é amoroso porque ela é tremendamente fã de todos os envolvidos; o destacamento de uma nova Quasar, o que pode ser interessante, e gostava de saber porquê esta pessoa; o pessoal da Marvel fartou-se do Steve Rogers velhote e por isso meteram a Kobik a mudar a sua realidade e fazê-lo voltar a uma versão anterior, mais nova; e fico curiosa por saber se outros(as) Kobiks já aconteceram, como fica implícito.

sábado, 14 de outubro de 2017

Jane Austen: Persuasão, Orgulho e Preconceito


Páginas: 224 / 360

Editora: Civilização

Tradução: Fernanda Cidrais / José da Natividade Gaspar

Portanto, há uns tempos estava com uma preguicite aguda de estimular o meu cérebro com histórias novas. Tempo perfeito então para reler dois favoritos: os meus favoritos de Jane Austen. Confissão, comecei o Persuasão tentando ler em inglês, mas o meu cérebro preguiçoso estava com dificuldades em se adaptar a uma estrutura gramatical e vocabulário um pouco diferentes, então passei para a tradução, ou então ainda estaria agora a tentar decifrar o texto. Ehehe.

Detalhes que posso destacar nesta leitura do Persuasão: toda a gente o diz, mas às vezes é difícil lembrarmo-nos de que a Jane é uma excelente escritora descritiva, brilhante a fazer o uso do show, don't tell. Ela não precisa de nos dizer que o Sir Walter Elliot é um pavão com a mania que é a maior dádiva de Deus à terra; basta mostrar-nos com aquelas atitudes ridículas de obcecar com o seu próprio (insignificante) título nobiliárquico, de ser um snob com a Marinha, ou de ser incapaz de desinchar a cabeça tempo suficiente para perceber que devia cortar nos gastos para poder ficar em casa.

A caracterização neste livro é das melhores que ela faz: a família Elliot, Anne excluída, parece ao mesmo tempo uma caricatura e uma descrição realista de alguém que existiu. As manias hipocondrícas da Mary que só se manifestam quando não é o centro das atenções, a indiferença da Elizabeth para com a Anne, preferindo uma companheira que não tem nada que a recomende... só me parte o coração porque noutros livros a Jane descreve amorosamente o laço fraternal, e aqui a pobre Anne não tem direito a nada que se pareça.

E ainda assim, isso de certa forma é uma maneira de enaltecer a Anne, mostrar como apesar de ter uma família terrível, que a descarta tão facilmente, a Anne persevera. Ela podia ser uma bruxinha irritante como a Mary, ou podia ter caído numa depressão depois das decisões que tomou 8 anos antes, mas a Anne emite uma aura de quem está confortável no seu canto, que não se deixa amargurar com o que escolheu. É refrescante.

Uma mulher com a idade dela podia ser considerada uma solteirona sem esperanças de casar, e ainda assim a Jane escolhe mostrá-la a uma luz bem diferente. Possivelmente uma reflexão do seu próprio percurso, e algo que me conforta, pensar que talvez ela própria se sentiria maravilhosamente com as suas escolhas. Uma mulher casada teria normalmente outro tipo de mobilidade social, mas a Jane parece ter-se dado bem.

Falando das escolhas da Anne, acho que ao longo dos anos, à medida que crescemos e ganhamos idade e experiência, podemos ver a sua cedência à "persuasão" de uma forma diferente. Há uns anos julgo que me apoquentava vê-la perder anos de felicidade com o Wentworth; agora, talvez já não tanto. A cedência à "persuasão" da Lady Russell - convenhamos, a opinião da família não teve aqui peso algum, a Anne com 19 anos já era esperta o suficiente para os ignorar - podia ser uma indicação de um espírito fraco? Podia, pois.

No entanto, não me parece ser o caso. Gosto de pensar que a Anne aceitou a opinião de uma amiga que via quase como uma mãe, que deu ouvidos a alguém mais experiente e em quem confiava. Sim, com 19 anos é terrivelmente excitante partir à aventura como lhes teria acontecido, mas tanta coisa podia ter corrido mal. A idade ensina prudência e imagino que seja por isso que a Anne não amargura com as suas escolhas. Aprecia melhor a possibilidade de a felicidade não ser garantida.

Outra coisa interessante a destacar é a ode à Marinha que a autora faz: como um contraste à pequena nobreza, a Marinha eleva homens em termos sociais pelo mérito, uma ideia bastante progressista para a altura. Pessoas como o Sir Walter ainda mantinham um snobismo, mas em geral as pessoas que se destacaram pelo seu trabalho na Marinha pareciam receber admiração pelas suas acções.

Última coisa engraçada: a Jane é tão mázinha com a aparência da Anne, imagino que deliberadamente. No início diz que ela já passou do ponto, que é desengraçada e perdeu a luz da juventude e tudo o mais - mas é mais como se estivesse a reflectir os comentários das pessoas que convivessem com a Anne. O desgosto apagou-a um pouco, mas assim que o Wentworth aparece e ela se permite ter esperança, a descrição muda, e ela até parece que brilha, e que recuperou o vigor e tudo o mais.

A parte final do livro é muito gira: a Anne é perceptiva e apercebe-se que o comportamento ridículo do Wentworth em Bath significa que ele ainda pensa nela (ele não é assim tão bom a esconder as suas motivações como provavelmente pensa que é), mas isso não é garante de um final feliz; ela só pode esperar que as coisas mudem, e dar a ajuda mínima que possa para o levar a mexer-se. E depois aparece aquela maravilhosa carta e é instigada porque o Wenty não se consegue controlar e põe-se a ouvir uma conversa que não devia - e isso é tão divertido para mim. Oh, e o Charles Musgrove, de todas as pessoas, é quem permite à Anne e ao Frederick conversar em paz e sossego. Tão giro. Bom ver que a Jane Austen tinha sentido de humor.

Quanto a Orgulho e Preconceito... há tanto e tão pouco a dizer. É um favorito, e li-o da primeira vez numa das melhores alturas. Tinha 16 anos, e o filme de 2005 estava prestes a sair, e os trailers chamaram-me a atenção (acabei de os ver outra vez e a montagem deles é gloriosa), e pronto, estava num ponto da minha vida em que podia ficar apropriadamente impressionada.

É a melhor maneira de escrever um romance, e uma que terá sido reproduzida tantas vezes desde então: dois personagens com perspectivas diferentes de vida, metem-se às turras, crescem, reencontram-se, ganham juízo, entendem-se. E como em todos os romances, nem a protagonista pode ser uma trouxa, nem o protagonista pode ser impossível de gostar.

Há algo bastante interessante com estes dois protagonistas que acaba por cativar os leitores, que é podermos acompanhar os seus defeitos e a sua evolução ao longo da narrativa, sendo bastante fácil de nos identificarmos com eles: a Lizzy sabe o que quer, e não cede às pressões sociais, mas toma decisões e conclusões precipitadas (todos já lá estivemos); o Darcy tem dificuldade em projectar uma imagem que corresponde ao que é por dentro (levante a mão quem nunca passou por isso), e a arrogância que projecta não é inteiramente inexistente, mas aprende um módico de humildade e está mais ciente de como as suas acções podem ser interpretadas - e aprende a não meter o nariz na vida dos outros, o que também não é nada mau.

Ao ler este livro estava a ler umas coisas sobre títulos em Inglaterra e precedências e tudo o mais... e dei-me conta de uma nuance que nunca ninguém explica ou fala, mas me parece bastante importante. A Jane mantém-se geralmente afastada de títulos, escrevendo mais sobre a burguesia e a pequena nobreza com terras mas sem títulos...

Aqui faz uma ligeira excepção: a Lady Catherine e a mãe do Darcy, Lady Anne, usam o título de Lady. Como Lady Anne era casada com um homem sem título (o Mr. Darcy sénior), podemos assumir que usam o título por virtude de serem filhas de pelo menos um conde (ou um marquês, ou um duque, mas cada título mais elevado é mais raro, ao que sei, e isso também dificultaria a ideia de a Lady Anne casar com um homem sem título). Dá uma nova perspectiva à conversa final da Lady Catherine com a Lizzy, enquanto a primeira está chocadíssima com a ideia do Darcy casar com a rapariga (pois o sobrinho é neto e sobrinho de um conde); mas a Lizzy lembra que é filha de um cavalheiro (alguém sem título), e o Darcy também é um cavalheiro (again, sem título), e por isso considera que são iguais, socialmente (o que a Lady Catherine não concorda por causa da sua ascendência). Um diferendo curioso que faz agora mais sentido.

Por outro lado, o marido de Lady Catherine usa o título de Sir, o que significa que será um baronete ou alguém com uma Ordem ou um cavaleiro. Sendo a senhora tão snobe, vamos assumir baronete, que tenho dificuldade em imaginar que ela acedesse a casar abaixo disso, socialmente. Consideremos então como hilariante é que, apesar de todos os salamaleques que a Lady Catherine acha que lhe são devidos, ela é "apenas" esposa dum baronete, mas porta-se como se fosse a rainha. Brilhante, mesmo.

E pronto, isto pode parecer muito óbvio, mas tenhamos em conta que para o leitor contemporâneo da Jane ela não precisaria de explicar títulos e formas de designar pessoas e tudo o mais, mas nos dias de hoje esse conhecimento não é assim tão comum como isso, e era simpático poder haver notas de tradutor ou assim que explicassem estas nuances, que são bastante interessantes e dão uma nova dimensão à coisa. Eu própria só me apercebi da extensão do quanto ela tinha colocado aqui ao pensar bem nisso, e ao ter a coincidência de andar a ler sobre títulos noutra fonte.